quarta-feira, 15 de setembro de 2010


Gula por palavras não é pecado, é capital.


Aline Emanueli

Dois E Dois: Quatro

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

Ferreira Gullar

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Meu povo, meu poema

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta


Ferreira Gullar

Galo Galo


O galo

no saguão quieto.


Galo galo

de alarmante crista, guerreiro,

medieval.


De córneo bico e

esporões, armado

contra a morte,

passeia.


Mede os passos. Pára.

Inclina a cabeça coroada

dentro do silêncio

- que faço entre coisas?

- de que me defendo?


Anda


no saguão.

O cimento esquece

o seu último passo.


Galo: as penas que

florescem da carne silenciosa

e o duro bico e as unhas e o olho

sem amor. Grave

solidez.

Em que se apóia

tal arquitetura?


Saberá que, no centro

de seu corpo, um grito

se elabora?


Como, porém, conter,

uma vez concluído,

o canto obrigatório?


Eis que bate as asas, vai

morrer, encurva o vertiginoso pescoço

donde o canto rubro escoa.


Mas a pedra, a tarde,

o próprio feroz galo

subsistem ao grito.


Vê-se: o canto é inútil.


O galo permanece - apesar

de todo o seu porte marcial -

só, desamparado,

num saguão do mundo.

Pobre ave guerreira!


Outro grito cresce

agora no sigilo

de seu corpo; grito

que, sem essas penas

e esporões e crista

e sobretudo sem esse olhar

de ódio,

não seria tão rouco

e sangrento


Grito, fruto obscuro

e extremo dessa árvore: galo.

Mas que, fora dele,

é mero complemento de auroras.



Ferreira Gullar

Minha gula por Gullar


Sinto fome.

Sopa de letrinhas não satisfaz a fome insaciável por palavras.

Busco os livros.

Às vezes me pergunto se todas as pessoas sentem essa fome... acho que alguns se acostumaram tanto com ela que já não a sentem. Outros se privam de senti-la, caminham magros, desnutridos, indiferentes aos sabores da vida... não sabem que olhos degustam...

Quem tem fome de palavras também tem fome de tudo o que as palavras não escrevem...

Sou gulosa. Gula por palavras não é pecado, é capital. Não compartilhar o é, por isso não poderia deixar de postar aqui alguns escritos de Ferreira Gullar, poeta que consegue, com palavras, despertar o que as palavras não escrevem.

O conheci num desses dias de sofreguidão, procurando nas prateleiras da Biblioteca Municipal algo para comer. Encontrei Toda Poesia, comi, me lambuzei e me apaixonei!

Eu, que pensei que amenizaria minha fome, senti mais fome. Quando a refeição é agradável ao paladar queremos repetir.
Sempre me cabem mais palavras, pois palavras não vão para lugares apertados, limitados como o estômago.

Desejo a vocês: fome, após a leitura, mais fome. Saboreiem, se lambuzem e se apaixonem!